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Ideologia californiana: uma reflexão sobre o que me guiou ideologicamente durante alguns anos da minha vida

Nos últimos anos, minha visão de mundo mudou radicalmente, em grande parte devido à minha atuação no mercado de tecnologia. Antes, eu acreditava que esse setor era diferente, mas percebi que a dinâmica de exploração e acumulação de capital é semelhante, se não pior, graças aos níveis de controle possibilitados pela evolução tecnológica.

Desde a adolescência, sempre tive uma visão progressista em relação à questões comportamentais. Cresci em um ambiente cristão, mas nunca me identifiquei com a religião, a ponto de ansiar pela idade em que poderia optar por não ir à igreja. Experimentei religiões de matriz africana, mas percebi que sou cético demais para seguir qualquer religião. Esse ambiente conservador me levou a buscar o oposto: ambientes com mais liberdade de comportamento e revoltas contra o sistema.

Adorava músicas de O Rappa, Racionais e Rage Against the Machine pela questão da revolta social, e bandas como Slipknot e Sepultura pelo choque que causavam nos cristãos. Gostava também de funk "proibidão", que abordava o movimento das organizações criminosas. Hoje, entendo que grande parte desse interesse refletia a minha vontade de marcar a minha diferença do meio em que fui criado.

Fascínio pelo Vale do Silício

Lembro que via apenas duas alternativas para melhorar de vida: concurso público ou abrir um negócio. Nunca fui um aluno exemplar, então optei pelo empreendedorismo, inspirado pelo sucesso de pequenos comerciantes sem educação formal que eu conhecia. Fiz um curso técnico em tecnologia na adolescência e comecei a trabalhar como freelancer, vendendo pequenos sistemas.

Ao entrar no universo da tecnologia, mergulhei em uma quantidade gigantesca de conteúdo técnico e sobre empreendedorismo do Vale do Silício. Filmes como "Piratas do Vale do Silício" e livros como "Lean Startup" e "Zero to One" — cujo título completo é "Zero to One: Notes on Startups, or How to Build the Future", traduzido como "Notas sobre startups ou como construir o futuro" — alimentaram minha fascinação. A ideia de construir o futuro, de jovens mudando o mundo com tecnologia e criando empresas disruptivas com culturas informais, me encantaram profundamente. Acreditei que a tecnologia e o empreendedorismo poderiam mudar o mundo para melhor, que os empresários de tecnologia eram diferentes, mais preocupados com a sociedade e o meio ambiente do que os empresários tradicionais de setores como bancos e mineradoras. No entanto, a realidade se mostrou diferente, revelando um setor muitas vezes tão impiedoso e focado em lucros quanto qualquer outro.

Essas ideias são impregnadas de ideologia e com o tempo, foram se enraizaram na minha forma de ver o mundo. Acreditei na ideologia neoliberal de estado mínimo e liberdades individuais para resolver os problemas do mundo com tecnologia. A burocracia e os impostos pareciam barreiras pro avanço tecnológico e social.

Li um artigo de Richard Barbrook e Andy Cameron sobre a Ideologia Californiana, que na época não me marcou tanto e que recentemente revisitei, depois de um vídeo do canal TeClas sobre o tema, com um olhar mais socialista que tenho hoje. Comecei a me aprofundar mais no tema impactos da tecnologia na sociedade. Livros como "Colonialismo Digital", "Colonialismo de Dados", "Weapons of Math Destruction" e "The Chaos Machine" me fizeram entender ainda mais os profundos problemas gerados pelas Big Techs. Também reassisti à série "Silicon Valley" da HBO, percebendo suas sátiras ao universo da tecnologia, apesar de não haver nenhuma crítica mais profunda sobre essa cultura, em diversos momento eu me via nos absurdos dos personagens rs.

Ideologia Californiana

A "ideologia californiana" é um termo que emergiu nos anos 90 para descrever uma visão de mundo específica, amplamente associada ao epicentro da inovação tecnológica global: o Vale do Silício, na Califórnia. Essa ideologia combina uma crença fervorosa no potencial libertador da tecnologia com valores de empreendedorismo individualista e uma visão otimista do futuro digital.

Origens e Características
A ideologia californiana nasceu da mistura entre a contracultura dos anos 60 e a ascensão da indústria de tecnologia nos anos 80 e 90. Ela foi moldada por figuras influentes da contracultura, como Stewart Brand, e empresários tecnológicos, como Steve Jobs e Bill Gates. A combinação desses dois mundos produziu uma crença forte na capacidade da tecnologia de resolver os problemas sociais e econômicos.

Os principais traços dessa ideologia incluem:

  1. Libertarianismo Tecnológico: Acredita-se que a tecnologia pode promover a liberdade individual, reduzir a necessidade de intervenção governamental e criar novas formas de organização social.
  2. Empreendedorismo e Inovação: Há uma forte ênfase no empreendedorismo como motor de progresso. A inovação tecnológica é vista como o principal caminho para a prosperidade econômica e a resolução de problemas sociais.
  3. Utopismo Digital: A visão otimista de que a internet e as tecnologias digitais podem criar uma sociedade mais justa, democrática e conectada.
  4. Cultura do Hacker: A celebração do espírito hacker, valorizando a curiosidade, a experimentação e a quebra de paradigmas estabelecidos.

Realidade e Desilusão

A realidade se impôs e a ideologia californiana revelou-se uma forma do capitalismo tentar ser mais palatável. Vi pessoas de esquerda adotando essa ideia, acreditando que as empresas de tecnologia eram diferentes. A adoção em massa das tecnologias do Google e Microsoft pelas universidades públicas brasileiras é um exemplo claro disso. Documentos vazados por Edward Snowden mostraram a proximidade dessas Big Techs com o governo dos EUA, revelando um lado sombrio dessas empresas que, até então, parecia oculto. Tornou-se evidente que as Big Techs não diferem das demais corporações. Elas buscam estabelecer monopólios, expandir seus negócios, acumular capital e vão usar de todos os meios para isso.

O sonho da liberdade digital se tornou um pesadelo. A internet, que deveria ser um espaço de livre compartilhamento de conhecimento, transformou-se em um feudo digital dominado pelas Big Techs. Movimentos anti-ciência, racistas e neonazistas encontram terreno fértil na internet de hoje. O software livre, que outrora representava uma promessa de emancipação, foi cooptado por essas empresas, que construíram suas plataformas sobre o trabalho voluntário de milhares de programadores, enquanto oferecem apenas migalhas à comunidade em comparação com os bilhões que faturam e os problemas sociais que causam.

Quando consideramos que mais de 95% dos servidores da internet operam em sistemas Linux, e que uma porcentagem ainda maior das aplicações é desenvolvida em linguagens de programação e frameworks de código aberto, é evidente que as Big Techs foram erguidas sobre essas tecnologias. Hoje, elas até comercializam como serviço na nuvem o pouco de código que disponibilizam para a comunidade, geralmente sob licenças que não são totalmente livres. Suas plataformas e tecnologias proprietárias foram construídas sobre uma base de código e conhecimento aberto acumulado ao longo de décadas, mas praticamente nada é devolvido à comunidade.

Essa exploração do valor, a exploração dos trabalhadores, o uso de tecnologias livres e o apoio estatal resultaram em acúmulos de capital, conhecimento tecnológico e influência que eram inimagináveis décadas atrás, concedendo a essas Big Techs poderes equivalentes aos de muitos estados. O sonho de liberdade e descentralização de poder da ideologia californiana agora parece ilusório e distante.

Big Techs e a Precarização do Trabalho
O impacto das gigantes de tecnologia na crescente precarização do trabalho é indiscutível. O caso emblemático da Uber ilustra isso: ao entrar em países sem regulamentação, a empresa desestabilizou o mercado dos taxistas, inicialmente oferecendo remunerações atrativas para os motoristas, ao mesmo tempo em que reduzia os preços das viagens e investia consideravelmente em lobby. Conforme esses aplicativos se tornavam parte essencial do funcionamento das cidades, a regulamentação subsequente, influenciada pelo lobby corporativo, favoreceu exclusivamente os interesses das empresas em detrimento dos trabalhadores. O mesmo padrão seguiu-se com o iFood e outros aplicativos de entrega de comida.

Hoje, motoristas e entregadores enfrentam jornadas exaustivas, arcando com os custos de aquisição, manutenção, seguro e combustível de seus veículos, enquanto os aplicativos, isentos de risco, retêm no mínimo 20% do valor recebido, sem oferecer transparência. Se um motorista ou entregador enfrenta algum problema e precisa interromper o trabalho, a responsabilidade recai sobre ele. Se precisar parar por um tempo por questões de saúde, sua capacidade de pagar as contas fica comprometida. Além disso, os aplicativos podem banir esses usuários de forma arbitrária, sem nenhum tipo de aviso prévio ou indenização.

Outra empresa que se beneficia da exploração de mão de obra barata e desprovida de direitos trabalhistas é a Amazon, por meio de seu serviço conhecido como Amazon Mechanical Turk. Trata-se essencialmente de uma plataforma onde empresas podem terceirizar tarefas simples, como categorização de imagens ou rotulagem de conteúdos, para trabalhadores precarizados ao redor do mundo. Estes indivíduos, muitas vezes trabalhando longas jornadas para garantir uma remuneração mínima, estão sujeitos à arbitrariedade do sistema, podendo ser banidos sem aviso prévio ou indenização, além de enfrentarem desafios psicológicos ao lidar com conteúdos violentos para treinar inteligências artificiais.

Essa prática de exploração para o treinamento de IA não é exclusiva da Amazon; outras grandes empresas que desenvolvem IAs poderosas também se utilizam desse tipo de serviço, mostrando que o lucro às custas do bem-estar e dos direitos dos trabalhadores se intensificam nesses novos tempos.

Como Mudei de Perspectiva

O texto "The Californian Ideology" remonta aos anos 90, e desde então, muita coisa aconteceu. No entanto, sinto que muitos dos pontos abordados nele se fortaleceram com empresas como Google, redes sociais e Tesla, entre outras. Até cerca de 2015 ou 2016, eu era o que poderia ser chamado de um entusiasta do Vale do Silício, especialmente da Google. Eu acreditava que era uma empresa exemplar, dadas suas políticas voltadas para os funcionários, o valor "Don't be evil" e o apoio a projetos de código aberto. A minha ficha começou a cair com os vazamentos de informações do governo americano pelo Eduard Snowden, onde eles coletavam dados dos servidores do Google, o Google negou que sabia e ainda emitiu um nota de repúdio, mas não acreditei que uma empresa do porte do Google, com toda essa capacidade técnica, não sabia de nada.

Com o tempo, a ganância desmedida da Google e das outras Big Techs tornou-se cada vez mais clara, com aquisições constantes para eliminar concorrentes e a consolidação de monopólios que impedem a entrada de novos players independentes. Esta realidade me fez perder a fé na ideia de que a tecnologia resolveria todos os problemas da sociedade. Comecei a perceber a importância do papel regulador do Estado, pois as empresas, se deixadas sem controle, visam apenas a acumulação de capital, negligenciando questões sociais e ambientais.

Como alguém imerso no mundo das empresas de tecnologia, testemunhei a competição implacável e a pressão incessante por crescimento infinito. Decisões são tomadas com base puramente na rentabilidade, deixando o lado social em segundo plano, ou até mesmo ignorado. O capitalismo exige crescimento constante; qualquer estagnação é vista como crise, resultando em demissões e aumento da pressão sobre os trabalhadores remanescentes.

Além disso, testemunhei uma ascensão preocupante da extrema-direita na sociedade, com liberais se alinhando mais com essa ideologia do que com valores mais humanos e racionais. Participei de congressos do Partido Novo em 2016 (me envergonho demais disso rs), onde vi pessoas apoiando Jair Bolsonaro, algo que já considerava inaceitável. Esse despertar político me levou a estudar mais profundamente e a adotar uma visão crítica do desenvolvimento dos países.

Percebi que a ideia do livre mercado é uma ilusão; nenhum país enriqueceu verdadeiramente seguindo esse princípio. Pelo contrário, o enriquecimento veio por meio de investimentos públicos, proteção das empresas e exploração das nações periféricas do capitalismo. Minha jornada me levou do pensamento desenvolvimentista ao reconhecimento de que, dentro da democracia burguesa, não há espaço para mudanças profundas na sociedade, as instituições existem para manter as elites no poder. A verdadeira mudança virá do conflito, da organização da classe trabalhadora e da tomada do poder.

Referências

  1. Barbrook, R., & Cameron, A. (2007, April 17). The Californian Ideology. Imaginary Futures. Recuperado de http://www.imaginaryfutures.net/2007/04/17/the-californian-ideology-2/
  2. Gellman, B., & Soltani, A. (2013, October 30). NSA infiltrates links to Yahoo, Google data centers worldwide, Snowden documents say. The Washington Post. Recuperado de https://www.washingtonpost.com/world/national-security/nsa-infiltrates-links-to-yahoo-google-data-centers-worldwide-snowden-documents-say/2013/10/30/e51d661e-4166-11e3-8b74-d89d714ca4dd_story.html
  3. Antunes, R. (2020). Uberização: Trabalho Digital e Indústria 4.0. Boitempo Editorial. Recuperado de https://www.boitempoeditorial.com.br/produto/uberizacao-trabalho-digital-e-industria-4-0-152361
  4. Hern, A. (2023, August 2). The human toll of training AI chatbots: ‘They don’t want to hear the truth’. The Guardian. Recuperado de https://www.theguardian.com/technology/2023/aug/02/ai-chatbot-training-human-toll-content-moderator-meta-openai
  5. Canales, K. (2023, January 10). OpenAI used Kenyan contract workers earning less than $2 per hour to make ChatGPT less toxic. Business Insider. Recuperado de https://www.businessinsider.com/openai-kenyan-contract-workers-label-toxic-content-chatgpt-training-report-2023-1#privacy