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Os desafios da Soberania Digital com a hegemonia da austeridade

O lançamento da Proposta de Plano Brasileiro de Inteligência Artificial pelo Conselho Nacional de Ciência e Tecnologia em 29 de julho de 2024 marca um momento importante na tentativa de posicionar o Brasil na corrida tecnológica. Embora a iniciativa use termos como "IA para o Bem de Todos" e "soberania nacional", reconhecendo a necessidade de uma abordagem inclusiva e focada no interesse público, ela ainda é insuficiente para transformar a realidade brasileira.

Estrutura e Dependência Tecnológica do Brasil

A proposta de um plano nacional de IA é um passo na direção certa, mas está longe de ser suficiente. O Brasil enfrenta desafios que vão além do desenvolvimento de IA; nossa infraestrutura tecnológica é deficiente. Não temos grandes players nacionais em cloud computing (computação em nuvem), o que nos deixa dependentes de grandes empresas estrangeiras para armazenar e processar nossos dados. Essa dependência reflete a posição histórica do Brasil na divisão internacional do trabalho: exportamos commodities como soja e minério, mas importamos produtos de alto valor agregado, como computadores e smartphones, e até mesmo insumos essenciais para o agronegócio, como maquinário e fertilizantes.

Reforma Tributária, Austeridade e Domínio de Empresas Estrangeiras

A recente reforma tributária pode agravar essa situação, aumentando a carga tributária das empresas de tecnologia nacionais em até quatro vezes, enquanto o mercado de cloud computing continua dominado por gigantes estrangeiras como Amazon, Microsoft e Google. Mesmo os players menores no nosso mercado são empresas internacionais, como Oracle e IBM, deixando pouco espaço para que empresas brasileiras possam crescer e competir em condições iguais.

Embora existam exceções, como Intelbras, WEG e TOTVs, que têm se destacado, a realidade é que a maioria das empresas de tecnologia no Brasil enfrenta grandes dificuldades para competir com as gigantes americanas, que contam com décadas de investimentos bilionários e acumulação de conhecimento. Os serviços de cloud são apenas um exemplo, mas praticamente todos os setores de tecnologia são dominados ou enfrentam forte concorrência de empresas americanas.

Atualmente, o discurso de austeridade é predominante na mídia brasileira, e qualquer notícia de investimento é sempre acompanhada de alertas sobre responsabilidade fiscal. No entanto, esses mesmos jornalistas pouco falam sobre as altas taxas de juros; uma redução de 1% na taxa de juros representaria aproximadamente 70 bilhões de reais de economia para o país. Esses temas são tratados como questões puramente técnicas, sem ligação com os interesses da elite financeira, sem ideologia, mas sabemos que é pura ideologia neoliberal. 

Plano Brasileiro de Inteligência Artificial

O Plano Brasileiro de Inteligência Artificial, infelizmente, parece mais uma peça publicitária do que uma estratégia para elevar o Brasil a um novo patamar tecnológico. As premissas são boas, destacando a importância de temas como bem-estar social, soberania tecnológica e de dados, sustentabilidade ambiental e ética no uso da IA. No entanto, a execução prática dessas ideias exige investimentos muito maiores do que os 23 bilhões de reais alocados para os próximos quatro anos. Para efeito de comparação, os Estados Unidos, já uma potência tecnológica, investiram cerca de 380 bilhões de reais em IA apenas em 2023, enquanto a China segue um caminho semelhante, com investimentos anuais na casa dos 300 bilhões de reais em 2024. Embora as economias de China, EUA e Brasil sejam incomparáveis, mesmo em termos percentuais do PIB, o Brasil continua muito atrás: EUA e China investem aproximadamente 0,3% do PIB em IA, enquanto o Brasil investe apenas 0,06%.

O que pode ser feito?

Utilizar as compras governamentais como impulsionadoras do desenvolvimento tecnológico nacional pode ser uma solução. Atualmente, o governo brasileiro contrata serviços de empresas como OpenAI e utiliza plataformas estrangeiras como o Google Drive nas universidades públicas. Ao fazer isso, não apenas destinamos recursos públicos para gigantes internacionais, mas também entregamos nossos dados, que são usados para treinar modelos e posteriormente nos vender tecnologias.

Uma sugestão interessante levantada pelo professor Sérgio Amadeu é a construção de um complexo de datacenters para as universidades brasileiras, eu incluiria na idéia um parceria com bancos públicos e estatais como Correios e Petrobras. Essa medida promoveria a soberania dos nossos dados, reduzindo a dependência excessiva das BigTechs.

Poderíamos aplicar uma abordagem semelhante para fornecer suporte tecnológico a setores importantes da nossa economia, como o agronegócio e o sistema de saúde. Atualmente, quase tudo o que o SUS adquire é importado, como ficou evidente durante a pandemia, quando a China se fechou e até itens simples, como macas, máscaras e luvas, ficaram em falta. Imagine o potencial de desenvolvimento tecnológico se o SUS adquirisse tecnologias desenvolvidas no Brasil. Além de estimular a economia e fortalecer a indústria, isso promoveria a soberania nacional.

No entanto, o governo atual, que eu me recuso a classificar como de esquerda, está trabalhando para derrubar os mínimos constitucionais da saúde e educação, o que significa ainda menos investimento nessas áreas. Se continuarmos no caminho atual, corremos o risco de repetir nossa história de exportadores de commodities, mas desta vez com os dados como a nova mercadoria. Em vez de vendê-los, estamos oferecendo de graça ou até pagando por isso. Precisamos de um projeto de país que defina onde queremos chegar e como, aumentando os investimentos públicos e exigindo contrapartidas das gigantes estrangeiras que desejem entrar no nosso mercado. Com a atual mentalidade de austeridade e submissão completa às vontades do mercado financeiro, continuaremos presos ao papel de produtores de commodities.

Plano Brasileiro de Inteligência Artificial: https://www.gov.br/mcti/pt-br/acompanhe-o-mcti/noticias/2024/07/cct-aprova-a-proposta-do-plano-brasileiro-de-inteligencia-artificial

Dados sobre exportação: https://portalibre.fgv.br/noticias/projecao-da-omc-para-o-comercio-mundial-de-2024-e-o-brasil

OpenAI no judiciário: https://www.reuters.com/technology/artificial-intelligence/brazil-hires-openai-cut-costs-court-battles-2024-06-11/

Tentativa do Governo Federal de retirar os pisos constitucionais da saúde e educação: https://outraspalavras.net/crise-brasileira/a-cruzada-de-haddad-contra-a-saude-e-educacao/

Aumento da carga tributária para o setor de tecnologia: https://abes.com.br/reforma-tributaria-coloca-em-risco-empregos-no-setor-de-tecnologia-e-compromete-capacidade-do-brasil-de-competir-globalmente/