Colonialismo Digital
Recentemente, participei de um grupo de estudos sobre o livro Colonialismo Digital, e decidi compartilhar por aqui alguns dos acúmulos ao longo da leitura . Acabamos de concluir a primeira parte, intitulada "O Dilema das Redes e a Atualidade do Colonialismo", e ela trouxe reflexões sobre a relação entre tecnologia, poder e capitalismo no mundo digital em que vivemos. Em um período em que a tecnologia se apresenta como a grande força transformadora da sociedade, mas a verdadeira questão é: estamos realmente no controle dessa revolução digital, ou estamos, de fato, sendo colonizados por ela?
Deivison Faustino propõe uma análise provocativa, questionando a ideia de que a tecnologia é uma força neutra e libertadora. Ele nos convida a repensar o mito do Deus Ex Machina e a refletir sobre como a digitalização e as plataformas digitais têm moldado nossos gostos, hábitos e desejos. A pandemia de COVID-19 acelerou esse processo, forçando uma digitalização em massa que, ao mesmo tempo que possibilitou a solidariedade e a criação de novos diálogos, também gerou bolhas transnacionais que dificultam a construção de consensos sobre questões globais.
O Fetichismo da Tecnologia
No livro, Deivison Faustino aborda o conceito de fetiche da tecnologia, que é um ponto central na análise das dinâmicas sociais e econômicas atuais. O autor nos alerta sobre a tendência de tomar todo avanço tecnológico como algo intrinsecamente positivo, sem considerar as contradições sociais que ele impõe. Esse fetiche é a crença de que a tecnologia é neutra, uma força que age de maneira natural, sem estar sujeita às relações de poder e exploração que a moldam. Essa visão facilita a naturalização da exploração, fazendo com que as coisas simplesmente pareçam ser como são, sem questionamento.
O autor faz uma analogia interessante entre a tecnologia e mitos culturais, referindo-se a ela tanto como "divindades libertadoras", que tornam a informação acessível a todos, quanto como "demônios autônomos", como visto em filmes como Matrix, que usurpam as almas dos usuários viciados. Essa dualidade revela a maneira como a tecnologia é percebida: ora como uma força que liberta, ora como algo que escraviza, mas, em ambos os casos, sem considerar os interesses e as relações de poder que estão por trás de sua criação e controle.
Deivison Faustino também conecta esse conceito com a teoria de Marx sobre o fetichismo das mercadorias. Para Marx, o fetiche ocorre quando as mercadorias e as leis econômicas deixam de ser vistas como produtos das relações sociais e passam a ser encaradas como entidades autônomas, dotadas de vida própria, fora das condições históricas e sociais em que foram geradas. O fetiche da tecnologia segue a mesma lógica: ele expressa não apenas a naturalização da exploração, mas também a aceitação do mito de que a tecnologia é neutra e incontrolável, como se não existissem forças e interesses específicos por trás de sua criação.
No entanto, o autor nos alerta para o perigo de cairmos no ludismo digital, uma visão que coloca toda a culpa nas máquinas, como se elas fossem responsáveis pela exploração. Isso nos distrai da verdadeira questão: o motivo pelo qual essas tecnologias existem, quem as cria, quem as controla e quais são as relações sociais e capitalistas que sustentam seu funcionamento. Ignorar esses aspectos nos impede de entender como a tecnologia, longe de ser neutra, é um reflexo e um reforço das dinâmicas de poder e desigualdade que governam a sociedade moderna.
Polarização das Leitura sobre o Período
De um lado, aqueles que defendem que Marx está ultrapassado: Neste novo modelo de sociedade informacional, esses pensadores ignoram o papel do mais-valia nas novas relações de produção. Acreditam que há uma ruptura com o "velho" capitalismo, propondo uma transição para um novo modelo social. No entanto, o que observamos é uma continuidade do capitalismo, mais aprofundado e precarizado, em que as dinâmicas de exploração permanecem, embora disfarçadas por novas tecnologias.
Do outro lado, a visão que ignora a magnitude dessa transformação: Muitos intelectuais sustentam que as mudanças atuais estavam previstas por Marx, mas falham ao reconhecer que os autores clássicos não anteciparam o imperialismo como uma expressão do capital monopolista. Eles não viram as duas grandes guerras europeias e as transformações geradas pela tecnologia informacional como parte de uma evolução do capitalismo.
Risco Eurocêntrico em uma Análise Politicista ou Economicista
Politicista: A redução das relações sociais e econômicas apenas à esfera política da sociedade ignora os fatores econômicos que também moldam as dinâmicas de poder. Essa visão estreita desconsidera a interdependência entre política e economia, limitando a compreensão das estruturas sociais complexas.
Economicista: Focar exclusivamente nos fatores econômicos, sem levar em conta as influências ideológicas e culturais que sustentam essas estruturas, resulta em uma análise incompleta. Ignorar as condições históricas e sociais que criam barreiras e resistências impede uma compreensão profunda da realidade e das transformações em curso.
A análise materialista dialética é uma ferramenta crucial para superar essas limitações. Ela permite compreender as múltiplas dimensões das relações de poder, incluindo as questões coloniais, raciais, imperialistas e de dependência, que não podem ser desconsideradas em uma análise completa das dinâmicas sociais e econômicas atuais.
Capitalismo, Colonialismo e Racismo
No livro, Deivison Faustino aborda a relação entre capitalismo, colonialismo e racismo. Deixa claro que não há capitalismo sem colonialismo e não há colonialismo sem racismo. Estas três dimensões estão intimamente conectadas, e uma compreensão crítica do sistema capitalista não pode ignorar seu vínculo com o colonialismo e a construção do racismo como ferramenta de dominação.
Nos países colonizadores, o autor aponta que, entre o explorado e o explorador, há uma multiplicidade de figuras intermediárias, como professores e conselheiros, que atuam como agentes ideológicos para justificar a exploração. Já nos territórios colonizados, são os policiais e soldados que desempenham o papel de repressão, assegurando que o controle sobre os povos nativos seja mantido. O racismo, nesse contexto, não é apenas um elemento periférico, mas um pilar essencial para a existência do colonialismo, funcionando como a base ideológica que desumaniza os povos colonizados, justificando suas explorações.
O autor também traz à tona o fato de que o colonialismo foi fundamental para a consolidação do capitalismo, ao garantir mão de obra escravizada e novos mercados. Sem a expropriação das terras dos nativos e a escravização, as relações capitalistas não teriam se desenvolvido da forma como conhecemos. O livro faz uma crítica forte a figuras como John Locke, que defendia a liberdade natural do ser humano, mas era sócio de uma empresa de tráfico de escravos. Para Locke, os povos não europeus eram reduzidos a meros meios de produção, desprovidos de humanidade, e isso alimentava a narrativa racista que justificava a invasão e a expropriação de territórios.
O Deivison nos faz refletir sobre como, historicamente, o "branco europeu" foi construído como detentor da verdade, da ética e da civilização, usando essa ideologia para justificar as atrocidades cometidas durante o colonialismo. Essa conexão entre capitalismo, colonialismo e racismo é a base para entendermos as desigualdades que ainda persistem hoje, e mostra como essas forças continuam a se alimentar mutuamente na sociedade até os dias atuais.
Imperialismo: Um velho conhecido
O imperialismo, na análise de Lenin, representa o estágio superior do capitalismo, caracterizado pela formação de grandes monopólios e pela financeirização da economia. Esse processo de concentração de capital tem profundas implicações, tanto no contexto econômico quanto social, e o Deivison revisita as teorias de diversos pensadores para explicar sua natureza e continuidade.
Autores reformistas, como Hobson, acreditavam que o imperialismo era uma consequência direta da desigualdade e que, com reformas voltadas para a melhoria das condições de vida dos trabalhadores, o imperialismo desapareceria. No entanto, a história nos mostrou que essa visão não se concretizou, pois o imperialismo não cessou com a melhoria das condições de vida no centro do capitalismo. Ao contrário, ele se transformou e se adaptou, continuando a exercer sua influência em diferentes momentos da história.
Deivison Faustino também traz à tona a crítica de Rosa Luxemburgo, que argumenta que a violência não se limitou ao período colonial, mas continuou ao longo de toda a fase do imperialismo, com sua violência sendo uma constante em todos os períodos de desenvolvimento do capitalismo.
Além disso, o Deivison nos provoca a refletir sobre o estado de bem-estar social (welfare state), que só pôde existir devido à transferência de capital da periferia para o centro do capitalismo, mantendo assim a desigualdade estrutural. Para justificar essa brutal desigualdade, surgiram teorias como o eugenismo, o racismo social e o darwinismo social, que ajudaram a consolidar uma visão de hierarquia racial e social que alimentava as práticas imperialistas.
Essa reflexão nos faz pensar o quanto o imperialismo, apesar de sua evolução, ainda está presente nas dinâmicas de poder e exploração que caracterizam o capitalismo moderno, e como as teorias que justificavam sua prática ainda influenciam as estruturas sociais atuais.
Neocolonialismo e o Neocolonialismo tardio: O Celeiro do colonialismo digital
No livro, Deivison discute como o neocolonialismo e o neocolonialismo tardio são responsáveis por perpetuar uma dinâmica de exploração que se reflete nas relações econômicas, políticas e tecnológicas globais, especialmente no contexto digital. O autor destaca o caso de países africanos, que, embora tenham conquistado a independência formal, continuam subordinados aos interesses dos países colonizadores. Um exemplo claro disso é a permanência da moeda francesa em várias ex-colônias africanas, a dominância das empresas mineradoras francesas e a privatização dos serviços públicos, muitas vezes controlados por corporações francesas. A elite local, muitas vezes, se rende aos interesses do antigo colonizador, perpetuando uma relação desigual.
Essa realidade do neocolonialismo não se limita à África; o autor aponta que, nas Américas, essa dinâmica também existe, embora de maneira menos visível. O capitalismo dependente é uma característica central desse processo, onde as economias periféricas dependem da exportação de matérias-primas e da importação de bens industrializados. Isso perpetua uma relação de subordinação, onde os excedentes econômicos gerados nas periferias são transferidos para os centros, enriquecendo as economias desenvolvidas.
O domínio tecnológico também é um aspecto fundamental dessa dependência. Os países centrais controlam as tecnologias avançadas, enquanto os países periféricos permanecem dependentes dessas inovações para seu desenvolvimento. Essa dinâmica resulta em subordinação política e cultural, onde as elites locais muitas vezes se alinham aos interesses das potências centrais, reproduzindo seus valores e estruturas institucionais. Esse processo resulta em um desenvolvimento desigual, em que as economias centrais se diversificam e crescem, enquanto as economias periféricas ficam presas a padrões de baixa complexidade econômica.
O autor faz uma analogia entre essa dependência econômica e a dinâmica do mundo digital. Hoje, geramos bilhões de dados sobre nossos padrões de consumo, que são coletados e utilizados para alimentar plataformas digitais e inteligências artificiais (IAs) que, por sua vez, são vendidas de volta para nós. Nesse cenário, as antigas barreiras nacionais desapareceram com a internet, tornando a influência cultural e econômica ainda mais fácil e invasiva. A relação de dependência, agora, é digital e invisível, mas segue alimentando o mesmo sistema imperialista.
Além disso, Deivison destaca o conceito de guerras híbridas, que se caracterizam por pequenos conflitos estimulados pela indústria armamentista. Os Estados Unidos, por exemplo, construíram mais de 50 bases militares em diversos países desde 2000, e têm exercido pressão militar e comercial sobre a China. Essas tensões geopolíticas reforçam a velha dinâmica imperialista, em que o novo conserva os mesmos interesses e estruturas de poder do passado.
O livro nos provoca a refletir sobre como, mesmo no contexto digital e nas relações contemporâneas, as potências centrais continuam a explorar as periferias, mantendo a estrutura de dominação do antigo imperialismo, agora adaptada às novas formas de economia e política global.
Conclusão
A reflexão proposta por Deivison Faustino nos leva a uma análise mais profunda da tecnologia, não como uma ferramenta neutra, mas como um reflexo das relações de poder que moldam o capitalismo moderno. O digital não é apenas um campo de inovação, mas um novo território de exploração, onde o antigo colonialismo se adapta às novas formas de poder e controle. A digitalização, ao invés de ser uma revolução libertadora, é muitas vezes um mecanismo de perpetuação das desigualdades e da dominação, tanto econômica quanto cultural.
Essa leitura nos desafia a repensar nossa relação com a tecnologia e a entender as dinâmicas de poder que estão por trás da chamada revolução digital. Em vez de aceitar passivamente o avanço tecnológico, devemos questionar quem realmente está no controle e como esses avanços estão sendo usados para moldar o futuro da sociedade.